sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Gurgel Motores S.A.: Quando o Brasil mostrou sua força... e teve de silenciar.

Uma história, como quase todas as histórias brasileiras, que busca trazer à luz como um país, eternamente comprometido com interesses e acordos sigilosos, se empenha em acabar com projetos brilhantes, em detrimento de sua própria evolução e independência, ao proteger os interesses financeiros de poderosas industrias alienígenas. Ajuda-as a vender suas tecnologias ultrapassadas, impede que novas tecnologias se fortaleçam no mercado e proporciona, assim, que as indústrias já instaladas não precisem investir e alterar suas fábricas ou processos de fabricação; assim ganham muito mais, já que quem compra um automóvel ultrapassado, em pouco tempo iria comprar o outro “mais moderno” que acabou de ser lançado e, dessa forma, essa indústria vende seus produtos várias vezes à uma mesma pessoa, se eternizando no mercado por disponibilizar, a conta-gotas, pequenos fragmentos de toda uma gama de criações testadas e aprovadas. Parecerá a história do que os Estados Unidos, presidido por Harry S. Truman, fez com Preston Tomas Tucker e seu incrível Sedan 1948, quando as gigantes de Detroit manobraram em conjunto para impedir, de uma maneira ou de outra, bonita ou feia, publicável ou não, que o fabricante e seus conceitos revolucionários ofuscasse suas marcas. Aqui, o nome do fabricante e seus conceitos revolucionários, que sucumbiu ao poder dos bastidores de outras bandeiras não foi outro senão João Augusto Conrado do Amaral Gurgel.

João Gurgel, como era mais conhecido, nasceu em 26 de março de 1926 em Franca, cidade a 416 quilômetros da capital do estado de São Paulo. Formou-se na Escola Politécnica de São Paulo, onde apresentou um pequeno veículo de dois cilindros, batizado Tião. Porém, o projeto pedido para a formatura era um guindaste, Gurgel quase foi reprovado e ainda ouviu de seu professor que "carro não se fabrica, se compra ". Bem brasileiro o raciocínio. Fez sua pós-graduação nos Estados Unidos, trabalhou na Buick Motor Corporation e na General Motors Corporation. De volta ao Brasil, criou em 1958 a Moplast Moldagem de Plásticos, tornando-se fornecedor de luminosos para diversas empresas brasileiras, enquanto fabricava karts e mini-carros para crianças. Em 1969 fundou a Gurgel Motores S/A, cuja marca mais forte era o desenvolvimento de tecnologias automotivas nacionais, com capital exclusivamente nacional. Em 1972 passou a dedicar-se à produção de veículos, cujas carrocerias eram confeccionadas em FPR – Fiberglass Reforced Plastic, com o modelo Xavante XT, para fins militares. Em 1973 mudou-se para sua cidade natal, onde desenvolveu e começou a comercializar o buggy Ipanema, com motor Volkswagen 4 cilindros a ar. Seu uso, saindo das areias das praias para lugares de difícil acesso, estradas lamacentas e atoleiros, mostrou à fabrica o caminho a seguir. Em 1974, a Gurgel apresentava o Itaipu, um projeto pioneiro de carro elétrico. Em 1975, a Gurgel lançou o Xavante X-12, seu principal produto durante toda a evolução da fábrica. Sua principal característica estava no chassi, feito em Plasteel – patente de Gurgel, que é a união de plástico com aço, material de altíssima resistência a torção e difícil deformação – fibra de vidro e o sistema Seletraction, ou seja, duas alavancas onde o motorista freava as rodas traseiras em separado, simples e eficiente meio de evitar que as rodas destracionassem em pisos escorregadios. Não era 4x4, mas era bem difícil atolar. O Exército Brasileiro fez uma grande encomenda, e uma versão militar especial foi desenvolvida, o que deu impulso à produção. Em 1976 foi lançado o Xavante X12 TR, de teto rígido, chassi em Plasteel e uma garantia inédita de fábrica de 100.000 quilômetros; entre 1977 e 1978, a Gurgel foi o primeiro exportador na categoria veículos especiais e o segundo em produção e faturamento, com cerca 25% da produção seguindo para fora do Brasil. Em 1979, toda a linha de produtos foi exposta no Salão do Automóvel de Genebra, além do lançamento dos furgões X15 e X20, sendo o Exército Brasileiro seu principal comprador do X12 e X15. A empresa tornou-se multinacional após atingir a marca de 4 mil carros exportados para mais de 40 países, com capital 100% brasileiro. Nessa época, a fabrica ficava em um terreno de 360 mil m², dos quais 15 mil construídos e 272 funcionários. Em 1980, a linha da Gurgel oferecia 10 modelos, todos com versões de motores a gasolina ou álcool. Este era o diferencial da empresa com relação a outras pequenas fabricantes de especiais ou fora de série – como Puma e Miura, entre outras, que sucumbiram ante a entrada dos importados, mas que atuavam em outro segmento – uma grande variedade de produtos, produzidos em série. Ainda em 1980, foi testado – depois de cinco anos de estudos – outro veículo de tração elétrica, o furgão Itaipu E400, que foi vendido em 1981 apenas para empresas, que deveriam reportar os problemas e dificuldades encontrados, afim de deixar o produto em perfeitas condições para o lançamento de versões picape cabine simples ou dupla, e em 1983 o Itaipu E400 para passageiros deveria chegar ao mercado. Entretanto, a tecnologia da época ainda engatinhava neste setor, as baterias demoravam até 10 horas para serem carregadas, seu peso era muito elevado e não permitiam uma autonomia satisfatória. Para não perder todo o projeto, foi lançado o modelo G800 com motor Volkswagem "a ar". O que é admirável até aqui? A ousadia dos projetos, muito à frente de seu tempo. Não, nenhuma apologia pode ser feita ao design dos carros, setor onde parece que a Gurgel não se empenhava nem um pouco. No mais das vezes, seus modelos oscilavam entre o feio e o muito feio. Porém eram funcionais e visavam solucionar problemas de hoje e que João Gurgel já havia enxergado. Em 1984, a Gurgel lançou o jipe Carajás, seu primeiro veículo com motor dianteiro; X12 TR, X12 RM, X12 M, X15 TR, G15 L e XEF também entraram no mercado, cada qual respondendo pela evolução de sua própria espécie. Mas o engenheiro João Augusto Conrado do Amaral Gurgel era um empresário anos-luz à frente do que se esperava. Sua grande ambição era criar um carro econômico, barato e 100% brasileiro, para os centros urbanos que já estavam ficando atulhados de carros. Em 7 de setembro de1987 – em plena era onde o país era governado (?) por José Sarney e o ministro da Fazenda aplicava o Plano Bresser para suceder o fracassado Plano Cruzado, além da infame Reserva de Mercado que engessou o desenvolvimento tecnológico no Brasil, bem ao gosto das potências que nos domina ainda hoje –, apresentou o protótipo 280M, um mini-carro com a missão de ser o mais barato do país, com motores dois cilindros horizontais opostos e 650 ou 800 cm³, refrigerados a água, com potência variando entre 26 eu 32 Cv, dependendo da versão. Do 280M chegou-se ao BR-800, lançado oficialmente em 1988. O objetivo de comercializar um carro com preço final de US$ 3.000,00 não deu certo; mesmo com um incentivo fiscal do governo brasileiro, que reduziu para 5% a alíquota de IPI, enquanto os demais eram taxados em 25% ou mais, dependendo da cilindrada, o BR-800 só conseguiu ser vendido a um preço médio de US$ 7.000,00, mais do que o dobro do projetado, mas ainda assim cerca de 30% mais barato que os compactos das montadoras multinacionais no Brasil, e a única forma de compra era pela aquisição de ações da Gurgel Motores S/A, que teve a adesão de 8.000 pessoas e foram vendidos 10.000 lotes de ações, onde cada comprador pagou os US$ 7.000,00 pelo carro e cerca de US$ 1.500,00 pelas ações. No final de 1989 havia ágio de 100% pelas mais de 1.000 unidades já produzidas. Parecia que estava dando certo, tínhamos o “nosso” popular urbano totalmente nacional, e a fábrica lançou o Motomachine, precursor em estilo do Smart que hoje importamos a preço de limousine. Então veio o governo Collor. Ao isentar de IPI todos os carros com motor menor que 1.000cm³, as grandes montadoras instaladas no país lançaram instantaneamente seus modelos. Liberando as importações de veículos, mesmo pagando aliquota de 85%, o Lada Niva era uma porcaria, mas era mais barato que os jipes Gurgel, e o brasileiro estava deslumbrado com a possibilidade de ter um carro importado, não interessando o quanto fosse ruim. Em 1991, os bancos Banespa e BEC fizeram novos empréstimos à Gurgel, e nesse momento as pressões sobre a empresa aumentavam muito, já que se antes desse passo a única fábrica totalmente nacional de automóveis ainda não incomodava, agora ela ameaçava crescer. Em 1992, a marca lançou o Supermini, uma versão melhorada do BR-800. Enfrentando as dificuldades, João Gurgel decidiu por outro projeto, o Delta, seu novo carro popular, com o mesmo motor Enertron e custando entre US$ 4.000,00 e US$ 6.000,00, mas não teve tempo; sua empresa chegou a adquirir máquinas-ferramenta, que acabaram não sendo usadas, quando o então governador Ciro Gomes não honrou o compromisso firmado de apoio irrestrito ao Projeto Delta, que consistia na instalação de uma fábrica em Fortaleza para a produção da parte motriz, em conjunto com a unidade de Rio Claro, que produziria as carrocerias. Os custos de produção no país, eternamente alavancados pela sobretaxação, tornaram difícil a concorrência com os importados. Sem o apoio do governo, a Gurgel pediu concordata em 1993. Na última tentativa de salvar a fábrica, em 1994 foi feito um pedido ao governo federal de um financiamento de US$ 20 milhões à empresa, que foi negado, e a fábrica foi declarada falida em1994. Era o fim de uma era onde brasileiros provaram ao mundo que não éramos a primeira geração dos símios que caminham sobre duas patas, mas sim pessoas capazes, inteligentes e destemidas, freadas apenas pela força bruta discreta e silenciosa dos corredores do poder. (por Renato Pereira)

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